O CEGUETA
por Arlindo de Sousa
O quotidiano das pessoas (em Chão Fértil, Região
Tedo-Távora) nem sempre era pacífico. Mesmo entre marido e mulher. Encostada à
casa em que vivia a família Pedregal, havia uma outra habitada por um casal com
cinco filhos, três rapazes e duas raparigas. As escadas, patim e demais
serventias eram comuns. Existia por isso pouquíssima privacidade.
A mulher era doméstica trabalhava ao mesmo tempo na
agricultura. O marido, além de agricultor, era também carpinteiro, tocava
concertina e falava com os espíritos dos mortos.
O homem era conhecido como o Cegueta. Quase ninguém na
aldeia lhe sabia o verdadeiro nome. A alcunha devia-se ao facto de ele ter um olho
de vidro, sempre arregalado, perturbante e intimidativo. Mesmo quando, sentado à
porta de casa, ressonava ruidosamente dormindo o sono da sesta. Era rara a
noite em que o Cegueta se não envolvesse em guerra com a mulher. Da seguinte
forma: o homem berrava metralhando com insultos a esposa; quando a infeliz mulher
lhe respondia a plenos pulmões, abafava-lhe a gritaria agredindo-a com o som
atabalhoado e estridente da concertina. E assim sucessivamente até altas horas
da noite. Finda a refrega, a pobre da mulher refugiava-se enrolada em
cobertores num canto mais abrigado do forro da casa. O Cegueta, por seu turno,
com aquele olhar escancarado e fixo de olho de vidro que afinal nada via,
debandava com a concertina para a adega, onde em conclave o aguardavam as almas
do outro mundo. Na adega, a agitação era enorme, registando-se mudanças
radicais de humor. Momentos havia em que – dizia-se – a assembleia, embora
barulhenta decorria animada a toque de concertina. Noutras ocasiões, porém, as
almas e o Cegueta misturavam-se em grande confusão, chegando a vias de facto.
Como num canto da adega funcionava a carpintaria, constava que teria havido uma
altura em que o Cegueta, em momento de perdição, apertou com o torno da bancada
de carpina o pescoço de um espírito, enquanto o fantasma estrebuchava aflito.
Nunca ninguém pôde confirmar a veracidade do que na aldeia era relatado como
absolutamente certo sobre o Cegueta. Mas
que – conta Pedro Pedregal – em casa e na adega do Cegueta havia
quase diariamente e até altas horas da noite estrondosa confusão, isso havia. Quando,
depois de uma noite tumultuosa, no dia seguinte Pedro Pedregal passava pelo
Cegueta, fazia-o por largo e a toda a brida. É que, embora não tivesse qualquer
perna do pau, o Cegueta tinha aspeto de pirata, “olho de vidro e cara de mau”! Mas,
curiosamente, havia na aldeia quem recorresse de vez em quando ao serviço
espírita do Cegueta. Às vezes, chamavam-no à cabeceira do um ou outro
moribundo.
Nessa altura, ele lia em voz alta o livro dos mortos talvez com um duplo
objetivo: por um lado, ajudava alguém a desprender-se mais facilmente da vida;
por outro, cativava mais um espírito para as reuniões fantasmagóricas da sua
adega. Às vezes, eram festas!
O Cegueta já morreu há mitos anos e a sua
malograda mulher também. Dos cinco filhos, os três rapazes constituíram família,
tiveram descendentes e morreram. Quanto às filhas, ainda hoje vivem. Nunca
casaram talvez por recearem que lhes calhasse em sorte algum marido violento.
Excerto retirado do trabalho de Arlindo
de Sousa,
intitulado
“Raízes Dispersas”