quarta-feira, 25 de junho de 2014

O CEGUETA - Bol. Antigos- nº 6

O  CEGUETA
por Arlindo de Sousa



O quotidiano das pessoas (em Chão Fértil, Região Tedo-Távora) nem sempre era pacífico. Mesmo entre marido e mulher. Encostada à casa em que vivia a família Pedregal, havia uma outra habitada por um casal com cinco filhos, três rapazes e duas raparigas. As escadas, patim e demais serventias eram comuns. Existia por isso pouquíssima privacidade.
A mulher era doméstica trabalhava ao mesmo tempo na agricultura. O marido, além de agricultor, era também carpinteiro, tocava concertina e falava com os espíritos dos mortos.

O homem era conhecido como o Cegueta. Quase ninguém na aldeia lhe sabia o verdadeiro nome. A alcunha devia-se ao facto de ele ter um olho de vidro, sempre arregalado, perturbante e intimidativo. Mesmo quando, sentado à porta de casa, ressonava ruidosamente dormindo o sono da sesta. Era rara a noite em que o Cegueta se não envolvesse em guerra com a mulher. Da seguinte forma: o homem berrava metralhando com insultos a esposa; quando a infeliz mulher lhe respondia a plenos pulmões, abafava-lhe a gritaria agredindo-a com o som atabalhoado e estridente da concertina. E assim sucessivamente até altas horas da noite. Finda a refrega, a pobre da mulher refugiava-se enrolada em cobertores num canto mais abrigado do forro da casa. O Cegueta, por seu turno, com aquele olhar escancarado e fixo de olho de vidro que afinal nada via, debandava com a concertina para a adega, onde em conclave o aguardavam as almas do outro mundo. Na adega, a agitação era enorme, registando-se mudanças radicais de humor. Momentos havia em que – dizia-se – a assembleia, embora barulhenta decorria animada a toque de concertina. Noutras ocasiões, porém, as almas e o Cegueta misturavam-se em grande confusão, chegando a vias de facto. Como num canto da adega funcionava a carpintaria, constava que teria havido uma altura em que o Cegueta, em momento de perdição, apertou com o torno da bancada de carpina o pescoço de um espírito, enquanto o fantasma estrebuchava aflito. Nunca ninguém pôde confirmar a veracidade do que na aldeia era relata­do como absolutamente certo sobre o Cegueta. Mas que – conta Pedro Pedregal – em casa e na adega do Cegueta havia quase diariamente e até altas horas da noite estrondosa confusão, isso havia. Quando, depois de uma noite tumultuosa, no dia seguinte Pedro Pedregal passava pelo Cegueta, fazia-o por largo e a toda a brida. É que, embora não tivesse qualquer perna do pau, o Cegueta tinha aspeto de pirata, “olho de vidro e cara de mau”! Mas, curiosamente, havia na aldeia quem recorresse de vez em quando ao serviço espírita do Cegueta. Às vezes, chamavam-no à cabeceira do um ou outro moribundo.

Nessa altura, ele lia em voz alta o livro dos mortos talvez com um duplo objetivo: por um lado, ajudava alguém a desprender-se mais facilmente da vida; por outro, cativava mais um espírito para as reuniões fantasmagóricas da sua adega. Às vezes, eram festas!
O    Cegueta já morreu há mitos anos e a sua malograda mulher também. Dos cinco filhos, os três rapazes constituíram família, tiveram descen­dentes e morreram. Quanto às filhas, ainda hoje vivem. Nunca casaram talvez por recearem que lhes calhasse em sorte algum marido violento.

    
Excerto retirado do trabalho de Arlindo de Sousa, intitulado
                                                            “Raízes Dispersas”

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